Os autômatos de Descartes
Descartes é considerado o pai da filosofia e ciência moderna por sua concepção racional e mecânica do mundo a partir de seus autômatos, máquinas que bem poderiam passar por seres humanos se não fossem duas características principais destes: a expressão dos pensamentos numa linguagem respondendo ao sentido de tudo que se coloca na sua presença e a razão como luz natural ou instrumento universal dos seres humanos, os únicos capazes de expressar seus pensamentos numa linguagem e por meio dela o sentido de tudo à sua presença.
Falar sobre a relação entre filosofia e mídia sem falar de Descartes é algo impossível neste sentido, haja vista que apesar dele contrapor a concepção racional do ser humano à mecânica do mundo, ele se tornou conhecido senão como o precursor de todo um mecanicismo moderno no qual as máquinas são vistas como ojeriza ao ser humano ao mesmo tempo que são cada vez mais produzidas à sua imagem e semelhança. Ele não é o único a pensar as máquinas na modernidade, pois muitos outros já a pensavam àquela época como demonstra Paolo Rossi no livro Os filósofos e as máquinas, porém, foi aquele que levou a fama de ter aberto uma compreensão do mundo a partir delas. De modo que, parece interessante perceber como as máquinas estão presentes no seu Discurso do método (1637), pensadas mesmo em paralelo a este no tratado que foi denominado por Tratado de mecânica por Nicolas-Joseph Poisson e como da contraposição do ser humano a elas surgiu a compreensão mecanista do mundo que lhe é devida.
Descartes refere-se aos autômatos particularmente na Quinta parte de seu Discurso do Método, um discurso que antecede seus Ensaios sobre os meteoros, a dióptrica e a geometria e a ciência universal que ele pretende expor e expõe, de modo introdutório, porém, já claro e distinto no que diz respeito às suas futuras Meditações metafísicas. Trata-se de uma parte na qual Descartes expõe todo seu racionalismo ao demonstrar os efeitos pelas causas fazendo um resumo de uma obra sua sobre O Mundo ou o Tratado da Luz, no caso, uma Luz que seria divina, da qual se originaria também uma luz natural e uma luz humana, de cuja origem ele fala como se fosse o que "aconteceria num mundo novo, se Deus criasse agora em qualquer parte, nos espaços imaginários" (Descartes, 1973, p. 60. Coleção Os pensadores). Uma luz que, segundo ele, estaria presente no coração humano que seria como um relógio e cujo calor ou energia vital ele emana por meio do sangue que rarefaz a todas as partes do corpo e ao cérebro, neste provocando mudanças e se perguntando como esta luz-calor que causa a vigília, o sono e o sonho, mas também:
como a luz, os sons, os odores, os sabores, o calor e todas as outras qualidades dos objetos exteriores nele podem imprimir diversas ideias por intermédio dos sentidos; como a fome, a sede e as outras paixões interiores também lhe podem enviar as suas; o que deve ser nele tomado pelo senso comum, onde essas ideias são acolhidas; pela memória que as conserva, e pela fantasia, que as pode modificar diversamente e compor com elas outras novas, e pelo mesmo meio distribuindo os espíritos animais [energia vital] nos músculos, movimentar os membros desse corpo de tão diversas maneiras, quer a propósito dos objetos que se apresentam a seus sentidos, quer das paixões interiores que estão nele, os ossos se possam mover, sem que a vontade os conduze. (Descartes, 1973, pp. 67-68. Coleção Os pensadores)E conclui este seu pensamento dizendo:
O que não parecerá de modo algum estranho a quem, sabendo quão diversos autômatos, ou máquinas móveis, a indústria dos homens pode produzir, sem empregar nisso senão pouquíssimas peças, em comparação à grande multidão de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada animal, considerará esse corpo como um máquina que, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente melhor ordenada e contém movimentos mais admiráveis do que qualquer das que possam ser inventadas pelo homem. (Descartes, 1973, p. 68. Coleção Os pensadores)Como observa Marisa Carneiro, em seu texto Sobre o tratado de mecânica de Descartes (2008), ao contrário da exposição racionalista comum em Descartes, ele lembra muito o pensamento empírico de Francis Bacon em sua análise do coração e do bombeamento do sangue por ele, mas podemos dizer que ele vai além disso, pois o que diz sobre a impressão das ideias por meio dos sentidos e o senso comum que as acolhem, não por menos com o recurso da memória e da fantasia, esta última, a imaginação, não dista muito do que David Hume fará em seguida. E, não por menos, sua crítica do empirismo dos sentidos, bem como do racionalismo de muitos doutos escolásticos coloca em questão senão a crítica da razão pura que Kant leva a termo com seu idealismo transcendental. E indo além disso, antecipa uma seleção natural pensada amiúde por Charles Darwin ao pensar que:
segundo as regras da Mecânica, que são as mesmas da natureza, quando várias coisas tendem a mover-se em conjunto para um mesmo lado, onde não há lugar suficiente para todas, tal como as partes do sangue saem da concavidade esquerda do coração tendem para o cérebro, as mais fracas e menos agitadas devem ser desviadas pelas mais fortes, que por esse meio aí vão ter sós. (Descartes, 1973, p. 67. Coleção Os pensadores)A visão mecânica do mundo faz Descartes a pensar todos os seres existentes como autômatos, mesmo que não fossem de fato assim para ele segundo a diferença entre as pouquíssimas peças deles e a grande multidão de partes existentes no corpo de cada animal e no homem e, neste em particular, sua razão. Uma diferença entre os autômatos e os animais, porém, que pode se tornar semelhança entre eles "se houvesse máquinas assim, que tivessem os órgãos e a figura de um macaco, ou de qualquer outro animal sem razão" a tal ponto que "não disporíamos de nenhum meio para reconhecer que elas não seriam em tudo da mesma natureza que esses animais". (Descartes, 1973, p. 68. Coleção Os pensadores) E mesmo se tornar uma semelhança entre autômatos e seres humanos "se houvesse outras [máquinas] que apresentassem semelhança com os nossos corpos e imitassem tanto nossas ações quanto moralmente fosse possível", mas neste caso, tendo nós "dois meios muito seguros para reconhecer que nem por isso seriam verdadeiros homens." (Descartes, 1973, p. 68. Coleção Os pensadores)
Os dois meios de se diferenciar os seres humanos e as máquinas são, enfim, a linguagem e a razão, ambas intimamente implicadas, no sentido de que as máquinas "nunca poderiam usar palavras, nem outros sinais, compondo-os, como fazemos para declarar aos outros os nossos pensamentos" (Descartes, 1973, p. 68. Coleção Os pensadores). Neste sentido, segundo ele, mesmo que elas possam "proferir palavras, e até que profira algumas a propósito das ações corporais que causem qualquer mudança em seus órgãos" (Descartes, 1973, p. 68. Coleção Os pensadores) perguntando, por exemplo, o que isso que toca e vê ou "grite que lhe fazem mal, e coisas semelhantes" como se fosse um ser humano, elas ainda assim não têm aquilo que é propriamente humano: a razão que arranja diversamente as palavras "para responder ao sentido de tudo quanto se disser na sua presença, assim como podem fazer os homens mais embrutecidos." (Descartes, 1973, p. 68. Coleção Os pensadores) E que, deste modo, os autômatos são como os animais que se diferem do ser humano:
Pois é uma coisa bem notável [isto é, evidente, portanto, verdadeira] que não haja homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem excetuar mesmo os insanos, que não sejam capazes de arranjar em conjunto diversas palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam entender seus pensamentos; e que, ao contrário, não exista outro animal, por mais perfeito e felizmente engendrado que possa ser que faça o mesmo. (Descartes, 1973, p. 69. Coleção Os pensadores. Grifos e negritos meus.)
E essa diferença existe até mesmo em relação às crianças, na medida em que também as máquinas e os animais não "igualassem nisso uma criança das mais estúpidas ou pelo menos uma criança com o cérebro perturbado". (Descartes, 1973, p. 69. Coleção Os pensadores)
É evidente neste sentido a partir de Descartes de como as mídias enquanto máquinas programadas atualmente para diversas funções na nossa vida cotidiana, principalmente, a Internet, e, algumas delas dotada de uma inteligência artificial capaz de proferir palavras, estão apesar disto distantes do pensamento humano e infantil mais embrutecido e insano, e mais ainda de qualquer pensamento filosófico que busca responder ao sentido de tudo quanto se disser na sua presença, isto é, dar uma resposta verdadeira sobre aquilo que aparece a si, distinguindo o que é enganoso e o que é evidente em "todas as espécies de circunstâncias", algo que, para Descartes, é moralmente impossível que numa máquina existam bastante diversas para fazê-la agir em todas as ocorrências da vida, tal como a nossa razão nos faz agir." (Descartes, 1973, p. 69. Coleção Os pensadores. Grifos meus.)
Para pensar nesta distância, basta pensar que não é uma máquina que escreve este discurso sobre Descartes, e sim, um ser humano e quem o lê também, a máquina sendo apenas o meio entre um e outro, a extensão entre um e outro ou de um a outro, que separa e une ao mesmo tempo os seres humanos enquanto meio ou mídia onde está a mensagem. O que, segundo Descartes, esta diferença é indubitável, pelo menos ainda, diriam, porém, os cientistas sem o bom senso costumeiro de Descartes a lhes fazer duvidar da capacidade de seus próprios pensamentos criando quase sempre aquilo que é moralmente impossível. O que não quer dizer, porém, que Descartes não desse importância às máquinas, pois pensou muitas detalhadamente, e que sua filosofia fosse uma ojeriza aos autômatos, mas que ele teve o bom senso de não os confundir com os seres humanos.
Enfim, se a imagem costumeira que se tem do racionalismo de Descartes é uma cabeça cujo cérebro funciona por engrenagens, isto demonstra apenas que se pode pensar o corpo humano como uma máquina, mas que o ser humano nunca será uma por mais que assim se queira, pois além da luz natural da qual ele é dotado, há algo que lhe é inerente a partir dela, seu livre-arbítrio de não se pensar e agir, portanto, como uma máquina.
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