Da tela à lousa

11:08:00
Plantas, móveis de madeira, lápis e uma lousa se destacam na sala de aula  no colégio Waldorf of Peninsula do Vale do SilícioP. L. (Tirada da reportagem)

O que se ganha e o que se perde com cada tecnologia? Esta é sempre a pergunta que se faz quando há uma mudança tecnológica, e um embate entre o passado e presente. Com as novas tecnologias da informação e comunicação isto se tornou cada vez mais visível, principalmente a partir de uma crítica pós-moderna às tecnologias.

Até a década de 50, quando as tecnologias da informação e comunicação ganharam força, não havia uma preocupação ética com a introdução delas na vida social. As mídias começavam a ser cada vez uma extensão do ser humano sem qualquer preocupação com ele. A teoria crítica da Escola de Frankfurt bem antes desta década já pensava nas mudanças culturais que as tecnologias impõe, mas por ser de esquerda e anticapitalista e antifascista não era bem vista, por ser uma defesa do tradicionalismo e sua aura contra as tecnologias modernas que prometiam o futuro para humanidade sem trabalho manual, livre de doenças e felizes com seus aparelhos eletrônicos.

Ao ser incorporada pelos autores pós-modernos, a teoria crítica se torna, porém, curiosamente a defesa daqueles que a criticavam por seu marxismo. Talvez digam em sua defesa que não são totalmente contrários à utilização das tecnologias, ao contrário dos teóricos de Frankfurt, mas estes também nunca foram contra a tecnologia e saudosistas do passado como pensa a elite capitalista tecnológica atual do Vale do Silício. Muito pelo contrário, pois o que questionavam é o cerne do problema hoje que se coloca na educação da lousa à tela como na reportagem de 2019 do El País, Os gurus digitais criam os filhos sem tela

O cerne do problema teórico crítico não é a utilização das tecnologias, mas como elas são utilizadas para dominação em massa da população, propondo transformar sua vida tornando-a mais fácil quando, o objetivo, é torná-la dependente de produtos tecnológicos que facilitam sua vida. Como é dito na reportagem por Pierre Laurent, engenheiro de computação que trabalhou na Microsoft, na Intel e em várias startups conselheiro de uma escola em que as telas e tecnologias são proibidas para crianças do fundamental ensinadas apenas com o uso de lousa e produtos manufaturados:
"Qualquer um que faz um aplicativo quer que seja fácil de usar", explica. "É assim desde o começo. Mas antes queríamos que o usuário ficasse feliz em comprar o produto. Agora, com smartphones e tablets, o modelo de negócios é diferente: o produto é gratuito, mas são coletados dados e colocados anúncios. Portanto, o objetivo hoje é que o usuário passe mais tempo no aplicativo, a fim de coletarem mais dados ou colocarem mais anúncios. Ou seja, a razão de ser do aplicativo é que o usuário gaste o máximo de tempo possível diante da tela. Eles são projetados para isso."
Talvez ele tenha se enganado em sua falsa consciência achando que só hoje é que as tecnologias são utilizadas para o lucro, no caso, através de anúncios e para que se gaste o máximo de tempo nelas, quando este é o princípio da utilização de qualquer tecnologia no capitalismo e de sua contradição. Neste sentido, que ele e outros tenham produzido e produzam cada vez mais tecnologias para as classes trabalhadores se viciarem no cotidiano enquanto limitam a si mesmo e seus filhos quanto a utilizam das tecnologias, só demonstra aquilo que a teoria crítica já advertia quanto à dominação das massas pelas mídias. A crítica de Pierre Laurent e de muitos como eles ao uso das tecnologias é deste modo o reconhecimento da teoria crítica da Escola de Frankfurt com um agravante, a consciência disso e a formação de uma nova classe empresarial capitalista no poder a partir da não-utilização das tecnologias. Se para as massas, há uma sensação de poder no uso das mídias, e de benefício com elas principalmente na educação atual, para as famílias ricas do Vale do Silício, o poder e o benefício está em não utilizá-las, fazendo delas uma casta superior e pura diante daqueles que vivem à mercê das tecnologias e não podem evitar isto, pois:
"Quantas famílias trabalhadoras podem se dar ao luxo de deixar seus filhos completamente longe das telas?", pergunta Álvarez, da Common Sense Media. "Não acho que isso seja algo realista para a maioria das famílias.
 A questão de María Álvarez, representante desta instituição que analisa a utilização das tecnologias por crianças e adolescentes, reflete assim o jogo de poder atual no que diz respeito às mídias: quem pode e quem não pode utilizá-las e quais os benefícios disso. Mais ainda, como aqueles que não utilizam se beneficiam daqueles que utilizam, e, paradoxalmente, a disparidade social se inverte atualmente, pois "Enquanto os filhos das elites do Vale do Silício são criados entre lousas e brinquedos de madeira, os das classes baixa e média crescem colados em telas." Ou seja, não ter acesso às tecnologias, uma condição dos pobres economicamente é um luxo ao qual os ricos se dão e a partir do qual eles buscam se diferenciar dos pobres e classe média que não conseguem abandonar a tela.

A questão, porém, não é se pobre ou classe média conseguem abandonar a tela, mas por que são produzidos produtos para eles que evitam cada vez mais isso enquanto isto não é admitido pelos ricos. Mais uma vez a diferença de classe se impõe neste caso, pois a questão é econômica e a reportagem não deixa dúvida. Os empresários do Vale do Silício não querem que seus filhos sejam trabalhadores, mas empresários como eles, que o capital acumulado por eles continuem sendo acumulado pelos filhos viciando as outras classes em seu próprio benefício.

A tecnologia, enfim, nunca foi um problema para os teóricos críticos, mas o capitalismo por trás dela e a ética principalmente envolvida nisso que só agora técnicos como Pierre Laurent conseguem perceber ao dizer que "'Não havia a consciência de que tínhamos que lidar com a ética. Algo que acontece, por exemplo, se você trabalha na indústria médica. Na tecnologia nunca houve um código ético claro.'" Se não houve e nem haverá um "código de ética claro" é porque códigos não fazem parte da ética, mas de uma moral que não admite questionamento teóricos críticos assim como muitos tecnólogos, pois isso implica em perda de capital.

É esta perda de capital que não se busca com as tecnologias, ainda mais nas escolas atualmente, pois seria uma perda em massa e nenhuma empresa tecnológica quer isso, que as massas abandonem as tecnologias por algumas horas, haja vista as inúmeras notificações de aplicativos. Tão pouco os trabalhadores de todas as classes querem também isso, não tanto pelo vício, mas pela alienação necessária em relação ao trabalho cotidiano e de suas vidas. Não há equação algorítmica neste caso que equacione este problema no capitalismo.

Reportagem do El País: aqui

Nenhum comentário:

Tecnologia do Blogger.