O diabo veste... listras
É interessante conhecer, pelo menos interpretativamente, a história das listras nas roupas e a tradução dos seus códigos em determinadas épocas como é feito na reportagem Why stripes are shapely, sexy and transgressive: Striped outfits enhance the contours of the human form. Matthew Sweet reads between the lines (Por que as listras são bem torneadas, sexy e transgressivas: Roupas listradas aprimoram os contornos da forma humana. Matthew Sweet lê nas entrelinhas), de Matthwe Sweet, que afirma que as listras são coisas do diabo a partir do livro de Michel Pastoureau, historiador francês e simbólogo heráldico, em "O pano do diabo: uma história de listras e tecidos listrados"(“The Devil’s Cloth: A History of Stripes and Striped Fabric”) em 2001. Isto porque, segundo este historiador, no século XII, os Carmelitas chegaram à Paris da Palestina em "dois tons" ofendendo o decoro papal que proibiu as listras, dando mote senão ao título deste breve ensaio.
Se a relação das listras com o diabo é discutível histórica e metafisicamente, podemos dizer filosoficamente que há uma relação muito próxima entre ambos, e o paralelismo atribuído por Deleuze à teoria da correspondência entre corpo e alma em Spinoza contribui um pouco para esta interpretação do ponto de vista hebraico. Assim como contribui também o fato de que as listras utilizadas nas roupas de praia de Coco Chanel de 1924 demonstradas na reportagem simbolizam a modernidade. Ainda mais quando estas roupas de praia começam a mostrar as pernas femininas, com certeza uma coisa do diabo para os puristas religiosos.
Para acentuar a história das listras com o diabo, nos uniformes de jogo das crianças de basebol na década de 50, Matthew diz que "Como aqueles que rolam na lama saberão, as listras escondem a sujeira." E como se não bastasse isso, acrescenta: "Esses jogadores de beisebol da Little League dos anos 50 estão vestidos para a violência alegre". Sujeira e violência se escondem deste modo nas listras, algo que o Papa parece ter previsto no século XII pelo visto, mas nós só descobrimos muito tempo depois, inclusive com os uniformes listrados dos presos nas cadeias de antigamente.
Por mais que se disfarce as listras com roupas de alta costura e modelos como o jogador de críquete da década de 20, Kumar Shri Duleepsinhji com seu blazer esportivo, ou com Marlene Dietrich num terno de risca de giz das cabeças aos pés de Yves Saint Laurent, e uma cômica gravata de bolinhas para disfarçar, é impossível ver no olhar fatal dela, o olhar de um mafioso desta época com seu cigarro na mão como ela está, em belo terno de listras. Ou seja, as listras continuam ameaçadoras e ainda mais com alta costura, informando-nos que estão prontas para nos pegar a qualquer momento, seduzindo-nos com seus traçados e ajustes perfeitos no corpo feminino mais do que no masculino no qual elas se originaram e foram roubadas pelas mulheres como diz Matthew, como Dietrich nos rouba o coração com o seu olhar. E talvez seja isso o que as listras querem dizer afinal que nós, homens, estamos constantemente presos às mulheres e, por isso, vestimos listrados, o que vale para qualquer sexualidade também, claro, em sua representação e interpretação aqui.
Que as listras são códigos de informação, do diabo ou não, e, portanto, mídias estilizadas, isto parece claro na moda marinheiro parisiense da década de 20 advinda do padrão estabelecido pela Marinha francesa. Ou ainda, no vestido zebra de duas mulheres que pouco se importam de estarem com o mesmo vestido numa festa, assim como as zebras de fato não se importam, isto porque representa um status social tanto quanto os ternos listrados masculinos, como é mostrado numa foto de 1966 de Wallis Simpson e Aileen Plunket. Este código de informação, por fim, é praticamente comprovado pelo djellaba, uma roupa masculina de Magrebe, no Marrocos, que foi apropriado culturalmente pela editora chefe da Vogue em 1974, Diana Vreeland, ao levá-lo para a 7ª Avenida para ser vendido como roupa feminina porque nele "Nada [é] estático - tudo se move bem, fica bem.", praticamente, uma roupa nômade adentrando o sedentarismo da moda, diriam Deleuze e Guattari. Ademais, subvertendo o código masculino delas, pois:
"Um fato que ela [Diana Vreeland] optou por não comunicar foi que o djellaba era tradicionalmente vestido masculino ("male dress"), e as listras coloridas transmitiam informações sobre o estado civil do homem dentro." (Grifos meus.)
Questão rizomática neste ponto, pois trata-se de um vestido masculino que se tornou um vestido feminino, porém, vestidos, historicamente, são roupas femininas e, no caso, foram roubadas pelos homens, de modo que, como dizem Deleuze e Guattari, o roubo faz parte da história, inclusive das ideias, e as listras servem também para demonstrar, quiçá, a punição pelo roubo dos homens de uma roupa feminina porque também, obviamente, "tudo se move bem, fica bem" nos países baixos deles. Mas não esqueçamos o detalhe principal, de que as listras coloridas transmitiam informações sobre o estado civil do homem dentro, ou seja, elas transmitiam como mídias a sua sexualidade latente, e como não pensar nisso nas roupas que vestimos, listradas ou não, no nosso dia a dia? Como não perceber os códigos informados a cada instante sobre a nossa sexualidade dentro delas? E como não pensar nestes códigos interpretados e traduzidos de vários modos, inclusive violentamente por homens que traduzem um desejo feminino por eles quando mulheres querem tão somente externar a sexualidade de seus corpos desejantes e não necessariamente desejar sexo com eles?
Neste sentido, as listras, bem como nossas vestimentas em geral com ou sem elas, são transmissores de códigos perceptíveis ao olho nu em contraste com o resto do corpo vestido, mas nossos olhos não estão nus como pensamos, pois mesmo sem o corpo estar vestido propriamente ainda está investido de códigos e símbolos a serem traduzidos mostrando o animal que logo somos, no caso, seres humanos, que vestem o olho nu de diversas formas, algumas intraduzíveis, mesmo com corpos nus à frente, despidos, em pelo, mas ainda cheio de cifras, senhas, segredos, desconhecidos ao pensamento em sua potência como dizia Spinoza e, quiçá, conhecidos somente pelo pensamento geométrico, isto é, um pensamento listrado.
Diferente dos outros animais, por sua vez, nunca estamos nus de fato, e os animais também não, investidos pelo nosso olhar, olhando-nos à espreita como um gato, como adverte Derrida. A nudez é um objetivo inalcançável para nós na medida que mesmo o corpo nu é vestido de vergonha, uma roupa invisível que os reis descobrem ao ficarem nus, e todos nós em algum momento. A vergonha é um hábito literalmente ou metáforico neste caso, aquilo que veste o corpo pecador, demoníaco em seu desejo, maquínico em seu inconsciente, e se as listras são transgressoras, por fim, em vez de prisões, é porque permitem dar vazão aos nossos desejos, são fendas por onde nossa sexualidade transborda atiçando o olhar, mídias que carregam informações de nosso corpo para além dele, para o outro que nos olha e nos traduz entrelinhas.
Ao contrário do que sugeririam como símbolo de prisão, as linhas são o que na prisão, como grades, permitem olharmos para além dos muros que nos prendem, libertarmos nosso olhar para além das paredes e clausuras cotidianas. São códigos de liberdade mais do que de aprisionamento. Por elas, expomo-nos ao mundo e aos outros como numa djellaba, em que tudo se move bem, fica bem melhor com listras.
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